terça-feira, 14 de maio de 2013

A massa


Depois de quase um ano e meio, volto a escrever no blog. Retorno com um conto. Espero que gostem:

A massa

O corpo que caiu foi um presságio. Espatifado, no chão, era agora geléia, avermelhada e amorfa. Deformada a face, que não havia. O Centro do Rio parou para observá-lo, o corpo. O corpo era meu, e era de todos que, fixamente, o observavam. A polícia até tentou cercá-lo e cercear da visão dos transeuntes a massa disforme de fluido e carne que ali estavam expostas, como num museu. A arte suprema da morte.

Mas o corpo pertencia à multidão, que se comovia. Uns choravam, outros, sádicos, riam. De nervoso. Porque, no final das contas, aquele corpo nos pertencia, era nosso último estratagema, nossa última fuga, a doce libertação da queda, da morte pensada. “Ele pulou de costas!”, exclamavam alguns, atônitos. Retirara, antes de lançar-se aos ares, todos os espólios da vida: os sapatos, as roupas e um relógio - falso. Somente na queda havia sido o homem verdadeiro, e morreu como os homens verdadeiros: esmagado por mentiras.

“Um suicida!”, bradaram rabinos, pastores e padres a rebanhos ordenados em todos os cantos das cidades próximas. O tento sufocou a opinião pública. A capa de jornal auxiliou: a foto, perfeita, da geléia, da ignomínia última de uma vida, comprimida ao chão.

Acendi um cigarro para apreciar a obra mais nefasta que já vi em toda minha vida. Em pouco tempo, porém, o feito foi suprimido, os jornais calaram sua voz molhada de tinta e de pressão e jamais tornaram a falar do homem mais livre da cidade. O homem que se libertou nos ares, o homem que foi verdadeiro em sua derrocada vertical – e literal. Como todos, também esqueci dele. Mas a massa disforme ficou impressa em minha mente. Bastava fechar os olhos para apreendê-la, para tê-la, a massa, ao meu lado.

Nunca me esqueci da massa. 

Luciano Pádua