sábado, 18 de dezembro de 2010

Jogada de mestre


Postar no blog parece algo simples, mas compromissos inevitavelmente me lembram trabalho – e o resto da associação não precisa ser explicado. O fato é que estou devendo (para quem, afinal?) textos. Não posso, portanto, me abster de comentar os acontecimentos recentes que mais me chamaram a atenção: os conflitos no Rio.

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O Rio de Janeiro é uma cidade abençoada por Deus e castigada pelo diabo. Um lar de hipocrisias conflitantes e de antagonismos coerentes. Nosso fardo é aturar a maravilha das belezas em contraste com a miséria aguda e alarmante de nossos subúrbios e das mais de 500 favelas, que, de fato, constituem a cidade.

Algumas coisas me chamam a atenção. Lembro até de um outro post desse blog, quando falei de mendigos e da invisibilidade social. Os problemas e as coisas podres existem independentemente da nossa disposição em disfarçá-los. Um caso recente dessa tentativa de atenuar a realidade exposta é a instalação dos painéis na Linha Vermelha, que pretensamente tinha como justificativa dar mais conforto aos moradores das comunidades ribeirinhas à via expressa fazendo o isolamento acústico. Sinceramente, enxugar gelo com os dinheiros – seu e meu – é uma palhaçada antiga, mas não deixa de irritar. Como disse o deputado Marcelo Freixo, um Estado que nunca se preocupou com o saneamento básico, a educação e a saúde dessas pessoas vem agora falar de conforto sonoro? Foda-se esse argumento.

Você talvez pense que eu me desviei do assunto proposto, mas não. O que aconteceu nessa “guerra” no Rio reflete um pouco disso. Demonstra como o Estado não existe em tantos locais, como se criou uma cidade dentro da outra, onde as leis não são exatas e a disposição social se adequa às dificuldades de sobrevivência das pessoas pobres e sem recursos. A população absoluta de moradores de comunidades no Brasil chega a mais de 50 milhões. No Rio, a coisa ainda se torna mais explícita porque se trata de uma cidade miscigenada e mesclada. Talvez seja a nossa mais peculiar característica: a aproximação do rico e do pobre. Um abismo social separado, às vezes, por uma rua.

A grande questão é entender que a violência na cidade não é um mal em si mesmo, é um reflexo da discrepância social gritante na qual vivemos. As favelas existem porque precisamos que existam; o indesejável se torna suportável por isso. Faz parte do próprio capitalismo.

Até aí, nada novo. Mas algo interessante de analisar é que ao longo de nossa história social desenvolvemos uma predisposição inequívoca para a desigualdade. Por isso, afirmo que os brasileiros não compreendemos o sentido de igualdade. E vou mais além: repudiamo-la. Não sou o único a dizer isso. Livros como Casa Grande e Senzala, Raízes do Brasil, Casa e Rua, Carnavais, malandros e heróis atestam isso. Faz parte do nosso ser social. Talvez seja assunto para um outro texto, mas ajuda a entender melhor como lidamos com essa questão.

Por essa dificuldade de compreensão do conceito de igualdade criamos um imaginário curioso - e contraditório com todos os discursos da modernidade. Abominamos a pena de morte, a crueldade das torturas e nos consideramos superiores a esses “retrocessos”. Contudo, acreditamos que há, em nossa sociedade, pessoas que não merecem essa consideração: cremos em seres matáveis. Ou seja, parte da população não se insere nos discursos e nas políticas públicas e simplesmente padece do descaso. A morte só é um ultraje quando atinge determinados indivíduos. O mesmo acontece com o crime, que só é uma transgressão de fato quando invade a realidade particular. Novamente, o personalismo de nossa sociedade.

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Tendo isso em mente podemos falar da série de ataques no Rio. O jornal O Globo criou uma seção especial chamada “Guerra no Rio”, com uma foto de um tanque militar ao lado. O governo conclamou a ajuda das Forças Armadas e fez o papel de herói, a polícia conseguiu finalmente retomar uma boa imagem com a população. Tudo isso em uma semana. Um pouco estranho? Eu acho.

De fato, os números reais se destacam. Segundo dados oficiais da Polícia Militar, foram 103 veículos incendiados, 123 prisões, 205 armas apreendidas e 37 mortes no total das operações. Números impressionantes e assustadores. No entanto, durante os atentados – posso estar errado nessa informação – não houve nenhuma (ou quase nenhuma) morte. É isso que me leva ao raciocínio mais complexo: por que os bandidos decidiram iniciar essa onda de ataques?

Qualquer pessoa que leia um pouco sobre esse assunto entende facilmente que os bandidos existem, da forma como existem, como uma concessão – feita por diversos segmentos sociais. Em outras palavras, eles pagam – e muito - para não ser incomodados em suas transações. Livros como O Abusado, Cabeça de Porco, entre tantos outros, mostram isso. Disso, surge uma verdadeira instituição no Rio de Janeiro: o arrego. A palavra tem sua origem do termo espanhol arreglo, que significa ajuste, acordo. É exatamente isso o que a polícia e o Estado fazem: acordos para perpetuar um ciclo econômico muito lucrativo, como o tráfico de drogas, os esquemas das vans etc.

Essa idéia de uma aliança entre o Estado e os bandidos, que garante um equilíbrio de forcas, me leva à conclusão de que queimar dezenas de veículos em vias públicas de grande circulação e buscar instaurar a insegurança é suicídio para os bandidos (pois quebraria a tal alianca e o equilíbrio). Obviamente o Estado, nessa situação, faria seu papel de salvador e colocaria toda sua força para “limpar” a cidade da ameaça sólida apresentada. Por que, no intuito de instaurar caos e pânico, os bandidos só mandaram queimar ônibus e veículos? Eles nunca tiveram consideração com a vida alheia, por que agora hesitariam em matar? Se eles estivessem assassinando nas ruas, a repercussão seria ainda maior, o medo mais incrível, e a reação do Estado a mesma. Isso me parece meio incoerente. É como arrumar uma briga com alguém e, na hora de começar, dar um soco no próprio rosto.

Outro fato que me deixa inquieto é a justificativa de que os ataques aconteceram por causa das UPP. A política das UPP é realmente interessante, porque muda um ciclo vicioso de violência contra violência. Essa foi a resposta do governo nas últimas décadas, responder tiro com tiro. Essa demonstração de poder é muito simbólica e traz a impressão de um trabalho eficiente, que pega os “vagabundos”. O imediatismo é a chave da sensação de segurança e do trabalho bem feito. Ninguém quer pensar nas variantes complexas do assunto; livrar-se da sujeira é imprescindível para continuar a vida de disfarces e ilusões. Ilusão porque a violência existe diariamente em muitos locais, mas como a maioria das pessoas (em geral, com situação financeira melhor) não a presenciam, não se importam. Faz sentido.

As UPP são, sem dúvida, um bom primeiro passo. Mas, não se pode pensar uma cidade inteira formada de UPP. Aí, chegamos no ponto em que, das treze UPP, doze tomaram morros sob o domínio do Comando Vermelho. Parece consenso que o Estado busca derrubar o CV, o que, por sinal, é muito bom. Mas e as milícias? Os discursos se calam nesse sentido. E não estou apenas repetindo o Tropa de Elite 2, não. Sobre as UPP, acho que elas não podem ser encaradas como solução única e nem devem se estabelecer apenas no corredor turístico da cidade. As políticas têm que ser feitas para os cidadãos, e não para o Comitê Olímpico Internacional e a FIFA.

Pelos motivos supracitados, atribuir esse “suicídio” da maior facção criminosa da cidade às UPP não faz sentido. Parece muito mais um tiro no pé. E dizer que bandido é burro me parece mais estupidez. O antropólogo Luiz Eduardo Soares, no programa Roda Viva da TV Cultura, afirmou que não acredita que as ordens para os ataques tenha vindo do CV. De acordo com ele, ocorre uma investigação em sigilo de justiça para apurar os fatos.

O próprio Luiz Eduardo já declarou que o modelo de tráfico de drogas como se dá no Rio de Janeiro está em declínio. Pagar o arrego, armar um exército, disputar com outras facções o território, gerenciar a droga, tudo isso custa muito caro e está deixando de ser economicamente viável. A razão de existir do narcotráfico é ser economicamente viável, não duvido que ele encontrará brechas para se transformar e concretizar sua aptidão primeira.

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Com esse post, quero tentar esclarecer algumas coisas que me incomodaram durante as operações da polícia. A cobertura da imprensa, a meu ver, foi boa em alguns aspectos, mas pecou em outros. Errou quando instaurou uma histeria coletiva, quando fez parecer que estávamos no Iraque. Não houve guerra civil. Houve invasão no Complexo do Alemão.

O trabalho conjunto das polícias foi interessante. No entanto, o Alemão já havia sido tomado em 2008. Acreditar que uma UPP vai ser a solução me parece ingenuidade. O que falta é a presença do Estado, com todos os seus desmembramentos, na região. Espero que aconteça, embora seja cético quanto a isso.

Os comentários que vi nas redes sociais me intrigaram muito também. A intolerância, a sede de sangue, a vontade de se livrar imediatamente do problema me fizeram concluir que os matáveis , de quem falei no começo do texto, realmente existem. O maniqueísmo das representações foi chocante: Bem X Mal, Certo X Errado. Simplificar as coisas é mais fácil para compreender e eliminar a ameaça, no caso o crime.

Nesse mérito, não serei hipócrita em dizer que devemos jogar flores aos bandidos como se fossem Iemanjá. Porra, a partir do momento em que a pessoa escolhe carregar consigo um fuzil capaz de arrancar a cabeça de um homem, não posso tratá-lo da mesma forma como trataria outro cidadão. É preciso agir com inteligência, e isso também faz parte desse raciocínio. Mas, o que chamou minha atenção foi a exaltação pela morte, pelo sangue, como se fossem animais a serem abatidos. As pessoas estavam torcendo por um genocídio.

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Em suma, quando um governo corrupto – como todos os outros -, cujo líder já participou de palanques de milicianos no passado, faz parecer que erradicou os problemas do Rio de Janeiro de uma só vez, com doses de espetáculo de guerra e tanques blindados, alguma coisa me diz que fazemos parte de engodo bem elaborado. É extremamente mais cômodo acreditar no acerto de contas, no fim da violência, do que numa reorganização do crime.

O fato é que de uma só cajadada o Estado assumiu o papel de salvador, a imprensa transmitiu exatamente essa “retomada da justiça”, ouvindo verdades particulares e mostrando uma situação exagerada. A polícia teve, finalmente, seu trabalho reconhecido. Mas nem o exército quer ficar no Alemão com medo da “contaminação” de seus soldados; esse argumento fala por si mesmo.

Em momentos nos quais uma verdade, no caso o renascimento do Rio de Janeiro, se estabelece acima dos fatos concretos, é perigoso não analisar a situação a fundo. No mais, fica a minha esperança para que as forças transformadoras na cidade não tenham 2016 como prazo final.

Até a próxima.

domingo, 24 de outubro de 2010

Admiração

Voltei ao blog. Falta-me disposição, confesso, para introduzir um novo tema. Há tanto o que ser aqui expresso, mas tem me falhado a capacidade de depurar os pensamentos e torná-los opiniões cheias e vigorosas, como busquei antes.

Na falha de se pensar por si, pensa-se por outros. E isso é tão belo quanto humilde. Admirar a capacidade alheia é fantástico para refletirmos sobre o que, de fato, somos e quais as nossas verdadeiras habilidades.

Uma das minhas admirações mais afetuosas, quase como de tio-avô, vai ao poeta Manuel Bandeira. Sua obra me foi, e é, muito importante por conta do que diz e transparece. Ao poeta parece ser fardo a tarefa mais cansativa e complexa ao homem: transformar o que se sente, e só existe na mente, em palavras. Não à toa, a poesia é cultuada desde os primórdios de nossa história. O homem lhe é indissociável.

É bem verdade que nesse mundo de virilidade e machismos inseguros no qual vivemos há tão pouco espaço para a poesia e a sua representação da vida. A vida é tão somente uma página em branco cujo conteúdo se faz como melhor aprouver. Olhamos para ela da forma como quisermos – e pudermos, claro. Os olhares, definitivamente, dependem de tantas outras variáveis que se acabariam as linhas na tentativa de descrevê-las.

Por esse peso da poesia, por sua natureza humana e a faceta quase transcendental a ela atribuída, não posso deixar de fazer uma homenagem a Manuel Bandeira. Ele tinha a incrível capacidade de simplificar coisas aparentemente insolúveis e se expressava em uma sinceridade seca e sofrida, com a melancolia de quem vive esperando a morte. Apesar desse pessimismo que se percebe a princípio, sua obra se transmuta em uma ode à vida e ao amor simples e livre de subterfúgios medrosos.

Ao contrário do que se diz, ele sempre trilhou um caminho próprio em sua obra. De seu início parnasiano cuidadoso ao fim de obra em versos livres e "modernistas", Bandeira foi um "tio" aos poetas modernistas brasileiros, que tiveram nele grande aliado. Seu compromisso com sua arte era ardoroso e ele o cobrava assim de outros artistas, como Vinicius de Moraes, que se tornou grande admirador de sua literatura e sempre apontou o amigo como o poeta brasileiro que mais o influenciou em suas criações.

Separei duas obras do grande poeta: A morte absoluta e Belo belo.

A morte absoluta nos faz sentir uma melancolia recatada, porque trata de morte e do medo primordial de se ir e deixar aqui, no mundo, o espólio inacabado do que se fez e tentou fazer. Demonstra o medo da fragilidade da carne e o absurdo de simplesmente não haver nada além, de interromper-se o existir para surgir a ausência.

Já em Belo belo aparece essa característica precisa e simples de Bandeira. Ele se desfaz das arrogâncias, de todos os acessórios que julgamos ser necessário à rotina, para se entregar à beleza das coisas mais ingênuas. Somente na poesia se pode tirar dos ombros tal peso.

Se quiserem compartilhar suas opiniões sobre os poemas e/ou criticar a minha falta de criatividade, fiquem à vontade.

A morte absoluta


Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.


Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.


Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?


Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.


Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."


Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

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Belo Belo


Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.


Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas estrelas cadentes.


A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.


O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.


Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.


Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.


As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.


Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.


— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.


A quem interessar mais da poesia de Manuel Bandeira, sugiro os poemas Madrigal melancólico, Profundamente, Vulgívaga, Os sapos, Desencanto, Testamento, Vou-me embora pra Pasárgada, Estrela da vida inteira, Poema do beco, Arte de amar...

É isso, gente. Fico aqui, até a próxima.


domingo, 10 de outubro de 2010

Crítica de filme?


"A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida" - Vinicius de Moraes

Sendo fiel à promessa de ser constante, volto a postar aqui. Vai ser difícil ofuscar o sentimento do último post, mas a vida existe e persiste, como dizem muitos. É necessário ir além das reminiscências e das pedras do caminho. Ao menos, parece isso ser o certo a se fazer.

Assisti a Wall Street - o dinheiro nunca dorme e ele me fez refletir bastante, especialmente sobre um tema que sempre paira nas conversas, nos sorrisos e nas felicidades (por que não?) de todos: dinheiro.

O cinema traz consigo um pacote de pensamentos e reflexões. E é impressionante a sua capacidade de nos desconstruir em tão pouco tempo. Wall Street faz um passeio estonteante e veloz pelo mundo enigmático da grande economia. Retrata as pessoas que nós, reles mortais, julgamos não serem reais. Se pensarmos bem, é compreensível. Não parece haver limites a suas vidas. A obsessão, a guerra, os orgulhos poderosos, tudo se congrega para criar uma realidade mutiladora e atroz, onde o dinheiro foi há muito esquecido e o que importa é a sensação de estar em si frente aos outros, ou seja, ser invencível. A invencibilidade remete à imortalidade e não é nem necessário explicar por que ela é tão almejada.

A falta de limites que os personagens transmitem, apesar de serem caçados por diversos censores, como o governo, causa uma grande contradição, pelo menos em mim. Por mais que a publicidade insista em nos vender as impossibilidades de uma vida livre e ousada, cada vez mais sinto as pessoas atadas a valores e necessidades abertamente opostas.

Por exemplo, quando se passeia por um Shopping Center. O que lá existe? Existe uma vida que não é a minha, tampouco a sua. Vende-se imagens, estereótipos, objetos, fotografias e roupas que vão se entranhando lentamente aos gostos das pessoas. Consumir é humano e é justo, faz parte de pertencer à nossa sociedade. O problema é o excesso, a desmedida (ou a Hybris como quiseram os gregos).

Os gregos, por sinal, acreditavam piamente no equilíbrio entre as forças da natureza e, por isso, do homem. Dessa forma, se houvesse numa cidade alguém suficientemente bom para ser muito superior a todos os outros, ele era expulso da polis para evitar a hybris dos sentimentos, como a inveja e a discórdia – era uma forma de se cortar o mal pela raiz. Nós, pelo contrário, insuflamos o excesso. Enfim, até aí, nada de novo.

Mas, o que acontece com aqueles que não podem consumir? Aqueles que vagam a esmo pelos corredores perfumados e aromatizados com cheiros que os próprios narizes nunca sentirão em suas casas; aqueles que são outros quando falamos sobre eles, mas que podem ser nós quando formos sinceros com nossas possibilidades. Não resta nada. O shopping se torna um amontoado de vontades congruentes e insaciáveis. Nós somos insaciáveis, se precisarmos. E esse é o meu link com o filme.

Wall Street narra a história dos bastidores da ganância e do poder, representado pelo dinheiro. A atuação brilhante de Michael Douglas e, especialmente, a natureza demasiado humana de seu personagem conseguem até se sobrepor ao final demasiado palatável - mas justo, ao final das contas. Os planos escolhidos pelo diretor me trouxeram um pouco da asfixia e da vertigem do ambiente retratado. A velocidade e a ferocidade embutida nos diálogos aparentemente corteses sugerem um emaranhado de mistérios, conspirações e intrigas, que, por si só, garantem um bom enredo. Gostei e indico.

No entanto, me fez refletir muito o personagem de Douglas, Gordon Grekko. Principalmente em suas falas. Em um momento ele compara o dinheiro a uma puta sem humanidade, que se não for devidamente vigiada se vai e nunca volta. Isso demonstra uma necessidade insistente e arrebatadora de se massagear um ego que não cabe em si mesmo. Tal fato está relacionado com a busca pelo poder e pela vaidade, que se utiliza do dinheiro como um artifício para fazer valer outras motivações díspares do que se pode pensar sobre a riqueza.

Nesse sentido, surge o dinheiro. O que é, afinal, o dinheiro? Muitos vão me dizer que é a solução dos problemas e outros vão ser audaciosos o suficiente (como já fui muitas vezes) e dizer que ele não traz felicidade. Que se fodam os clichês. Sim, o dinheiro é importante. Toda a vida se pauta nele, naquilo que ele proporciona. É aí que gosto de ver a questão. O dinheiro não é um fim em si mesmo, mas, ao contrário, um meio para fins outros.

O filósofo alemão Edmund Husserl introduziu uma forma muito interessante de se analisar a realidade. Ele dizia que a verdade das coisas nos era impossível de ser compreendida porque o exterior e as coisas que vemos nele impedem de se extrair a verdade ou a essência daquilo que vemos. Assim, o objeto em questão se "contamina". Então, ele propôs uma forma, com vários métodos, de se buscar extrair das coisas aquilo que as tornava "impura". A isso se denominou redução fenomenológica.

Por isso, é necessário fazer uma redução fenomenológica, em seus devidos termos, em relação ao dinheiro. Por que devemos tê-lo? Ele faz feliz. E por que? Porque nos permite ter acesso às coisas, ao consumo, à tranqüilidade de uma vida rica e farta. Na verdade, o papel pouco importa. Seu valor não está no lastro, mas em suas conseqüências.

O dinheiro nos leva a um mundo sem dificuldades, onde parece ser mais fácil se embeber de felicidade. Afinal, a felicidade e a realização são os fins últimos de nossa existência. Representam talvez a única forma de poder dizer, e com sinceridade, em seu último suspiro: “Eu aproveitei a minha vida. Fiz valer cada segundo que me houve”. Esse é o desejo mais persistente na cabeça, ainda que seja mórbido, mas quem disse que a vida não é?

Entre tantas pretensas vontades e desejos, surge o dinheiro como o instrumento, o arauto de esperança da vida vazia. Vale ressaltar que novamente o problema não está no dinheiro, ele não é maligno. Por sinal, ele não quer nada, é um mero meio. O problema - se isso for um problema e não uma materialidade inequívoca - está em quem o utiliza.

Uma das frases de Gekko ficou em minha cabeça por sua incrível realidade. Quando ele diz à filha que ela precisa give a break (não soube como traduzir com precisão, mas é algo como dar uma trégua) às pessoas porque elas são um misto de coisas que não entendem, simplesmente faz um resumo muito fiel do que somos e como funcionam nossas motivações. Se tantos se sentem perdidos, por que esperar sempre por atitudes encontradas?

A vida se faz por cima do encontros e desencontros.

Fico por aqui e até a próxima.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A partida e a chegada

A vida nos traz tanta coisa. De decepções a felicidades, tudo faz parte de estar vivo. Inclusive a morte, que é, senão uma pré-condição, o destino último dos nossos suspiros.

E ela pode ser triste. Ou não. A grande dificuldade é entender sua estreita ligação com tudo o que nos envolve. Temê-la é humano e admirá-la, por sua realidade material, mostra maturidade. O grande problema da morte é a incerteza do que virá depois. É claro que a isso, não se pode responder. Ao menos, não com precisão e certeza. Fica a promessa de um texto sobre isso (a quem possa interessar tal assunto).

Vim aqui apenas homenagear alguém querido e trazer algo novo ao blog, a poesia. Como disse Vinicius, "depois da partida há sempre chegada". É aí que reside meu pensamento quando me deparo com a inevitabilidade da iniludível.

Dedico este post a meu avô Pedro (1918 - 2010).


Pedro mineiro

Dedico ao avô mais terno
este singelo poema aprendiz.
Ao homem que construiu,
Sem medo, uma família feliz
[mesmo com suas difilcudades.

Dedico a Pedro, patriarca,
a brasa do amor que abarca;
a amizade e as simplicidades
do amor que nunca se consumiu.
[quando você partiu, vô, trouxe inverno.

Se os pais não devem enterrar
Seu filhos, foi justa sua ida
pois não prorrogou uma vida
que já não podia continuar.
[anos e anos de tanta simpatia...

Pedro foi avô e gerou os pais
e as mães dos netos alegres de Inhaúma.
Foi o engenheiro das Minas Gerais
e da Ponte, para nossa doce fantasia.
[sua moral formidável foi apenas uma

Pedro se foi, e não agora
que se vêem esses tubos e dor.
Ergueu-se a outra hora,
outro tempo, calmo e sereno.
[Demos a ele nosso louvor!


Com isso, findo minha homilia
Ao mineiro simples e quieto
Que honrou seu nome e família
E de quem tenho orgulho de ser neto.

Luciano Pádua 1-10-2010

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Fragilidade

Opa,

Voltei a postar por aqui. Falei que ia manter uma regularidade, mas é difícil driblar a preguiça.

Hoje farei algo diferente do último (e único) post. Vou falar sobre uma matéria que fiz na faculdade, na qual tive a oportunidade de conhecer ex-moradores de rua e aprender um pouco mais de suas vidas e dificuldades.

A matéria foi colada abaixo. Mas antes, uma pequena reflexão.

Nossos olhares acabam se acostumando a ver mendigos, pivetes, e até mesmo as palavras que os designam são de certo modo pejorativas e causam um pouco de asco. O choque parece inevitável, as coisas, afinal, são como são. É difícil esquecer as roupas sujas, a aparência deplorável e o preconceito natural para com aquilo que nos é tão distinto.

Contudo, tenho mudado bastante minha visão das coisas. De fato, ninguém é santo e fazer uma análise maniqueísta, na qual pobres são coitados e os ricos são predadores vorazes da felicidade da classe oprimida, não me apetece. Acredito mais na proporcionalidade dos fatos. Uma pessoa se torna quem é por vários fatores e, sem dúvida, a classe social é determinante, na grande maioria dos casos, para a formação de um indivíduo. Mas há tantos exemplos que podem me contrariar...

Ter dinheiro, ter uma boa base familiar, tudo isso parece ser muito importante para que uma pessoa não chegue ao fundo do poço, se afundando no consumo de drogas e afrontando suas convicções para viver uma vida que considera indigna. Sem dúvida, o fato de se tornar um morador de rua está relacionado com problemas graves na formação pessoal e psicológica de alguém. No entanto, muitas vezes gente que tem tudo acaba se perdendo dentro do vão que existe dentro de nós mesmos.

Concordo que estou pisando em conceitos complexos e maleáveis. Afinal, cada um decidirá por si o que é “estar perdido" na vida. Cada pessoa define a seu gosto o ideal de vida que pretender ter como sua. Entretanto, havemos de concordar que existe um padrão – que, por sinal, é estudado e pensado desde os gregos antigos. O padrão é que todos buscam a salvação para a vida, porque a vida sempre termina em morte, e assim há de ser. Ser feliz, seja lá o que isso signifique, é um desafio imposto pela brevidade de nossa existência; ora, temos que fazer nosso "pouco tempo" valer, a vida é curta e o tempo urge. E isso acaba fazendo algumas pessoas se afogarem nas próprias armadilhas. (essa discussão também deságua em religião, ética, entre tantos outros assuntos que pretendo debater aqui, mas abordo por enquanto somente este lado da moeda.)

Quando nossas agonias encontram um consolo movediço, que é o caso das drogas, as coisas podem ruir de uma forma como nunca esperamos. As drogas, sem dúvida, trarão um alento momentâneo – vale lembrar aqui que não somente elas são assim e, portanto, não as estou demonizando -, seguido muitas vezes de uma lacuna muito grande que a vida sem ela não pode preencher. E é exatamente aí que a coisa degringola. Os impulsos de estar bem consigo mesmo, ou querer esquecer as intempéries que chegam em contas atrasadas, em mortes prematuras, em doenças incuráveis, entre tantas outras moléstias que a vida proporciona, fazem as perspectivas e os limites se relativizarem.

O meu ponto é fragilidade da vida como a concebemos. O que hoje parece ser imutável pode se tornar uma lástima, uma decepção terrível, sem aviso prévio. Coisa simples: imagine-se numa festa e começa uma briga. Você está na sua, mas alguma outra pessoa vem bater em você ou em algum amigo seu. Você se defende (ou defende o seu amigo) por impulso, por reflexo natural. Esse impulso é machucar o atacante. O cara que ia te bater morre com isso (estou exagerando, claro). E agora? Simples, fudeu tudo. Se você não tiver influência e muito dinheiro pode parar na cadeia e dificilmente sua vida volta aos trilhos cujo caminho você gostaria de percorrer. E tudo isso assim: de supetão, numa manobra rápida das coisas.

Por fim, fica essa reflexão sobre a fragilidade (e a frugalidade, por que não?) daquilo que nos cerca. Morte, doença, loucura, vício, ganância, todos esses fatos aos quais estamos expostos e utilizamos para estarmos presentes no mundo. Esse emaranhado de acontecimentos concomitantes deixa muita gente atordoada ao ponto de perder o controle de suas ações e de suas vontades. E nós, por mais que pensemos estar acima de tudo isso, não somos imunes aos perjúrios de viver.

No próximo post vou tentar falar do lado bom da vida também. Nem tudo é merda, aliás há muito de bom, principalmente o fato de estar vivo.

A matéria:

"Parte da paisagem

Os moradores de rua estão em todos os lugares. Nos bancos, debaixo de marquises, nas calçadas. Da zona sul à baixada. Tornaram-se parte integrante da paisagem. Eles estão tão presentes no cotidiano que as pessoas esquecem deles. Não reparam que são pessoas com histórias de vida únicas e passaram por fatos inacreditáveis para estarem naquela situação.

É o caso de Ubiratan, 47 anos, ex-morador de rua, que vive agora numa instituição de reabilitação social. Bira, como diz ser chamado, tem uma história de vida extraordinária – no sentido mais fora do comum possível. Contemplando seu rosto desacreditado é possível ver as marcas de um passado sofrido. Seu olhar é profundo, tendo inclusive as retinas azuladas devido ao álcool. Seus movimentos também foram prejudicados e anda com a ajuda de uma muleta.

Ao longo da conversa, ele fez questão de dizer que era diferente dos outros internos da Casa Betânia, instituição de reinserção social para moradores de rua. Relatou que viera de uma família de classe média e trabalhava como enfermeiro até as drogas, o álcool e sua própria perturbação interromperem sua vida.

Bira em sua terapia ocupacional

Com um jeito brincalhão, mas um pouco incomodado, ele nos contou sobre sua trajetória. Com um bom português, afirmou que sempre gostou de “andar por aí” e teve grande dificuldade de dormir desde criança. Assim, saía à noite para andar e pensar sobre a vida. Disse que passou um ano viajando “pelo mundo” com 18 anos. Seu pai, músico profissional, lhe deu uma educação bastante flexível.

Depois disso, ele disse ter feito um curso de enfermagem e se alistado no exército. Sua vida ia tranquila até o momento. “Eu gostava de beber, claro, mas só umas cervejinhas. Drogas? Eu só usava maconha porque me relaxava. Eu tinha um bom relacionamento com todo mundo lá no quartel”, contou.

No entanto, a morte da mãe trouxe complicações psicológicas muito comprometedoras para ele. O alcoolismo e a dependência das drogas começou nesse momento. “Eu sempre fui meio perturbado. Nunca dormi direito, sempre tive esses pensamentos estranhos... Quando minha mãe morreu, eu caí numa depressão profunda. Comecei a beber e a cheirar muito. A vida foi complicando."

Ao mesmo tempo, foi acusado de um crime, do qual jura não ter participado. “Um dia, o soldado que fazia a faxina do quartel me pediu para ajudá-lo a jogar fora o resto de gesso. Achei estranho o peso do saco, mas concordei. Não tive maldade. Quando a gente saiu, ele começou a andar em direção ao carro dele, não entendi bem. Foi aí que o capitão mandou a gente parar e viu o que havia no saco: metralhadoras, pistolas, munição...”, relatou com tristeza. “Aí não teve jeito. Vou falar o quê? Fui preso, mas me inocentaram um ano depois.”

A prisão por contrabando agravou seu estado. Ao sair da clausura, mergulhou na bebida e na cocaína. Sua inquietação mental era tanta que tentou se suicidar uma vez, sendo salvo pelo acaso. “Eu estava num hotel da Central do Brasil e fui tomar formicida com Coca-Cola para me matar. Quando saí para comprar o formicida, encontrei um antigo tenente do quartel onde eu servia. Ele me reconheceu e me achou esquisito demais. Voltei pro meu quarto, tomei o veneno e esperei morrer. Por sorte, o tenente veio com dois guardas até o meu hotel, me achou e impediu minha morte”, disse Bira.

Ele não foi preciso quanto às datas, mas tinha cerca de 26 anos na época. Desde então, oscilou entre a casa, numa favela da zona norte, e as ruas. Ele disse que na vida de um morador de rua os dias são felizes e agitados, mas as noites frias e perigosas. “O dia é a melhor coisa, dá para bater papo, beber, ficar numa boa. Ninguém te faz mal. De noite a coisa muda. É um inferno, gente que te rouba, te bate, maltrata. Por isso, eu sempre tentei ficar sozinho, na minha”. Além disso, destacou o álcool como a pior das drogas. Segundo contou, a bebida pode ser conseguida em qualquer lugar, é barata, tira a fome e não há repressão contra seu uso. Ele até lembrou de um policial que pagava bebida aos moradores de rua.

Bira confirmou ter uma irmã com quem não gosta de ficar porque não tem boa relação com o cunhado. Como muitos outros internos da instituição, argumentaram que não desejavam, de forma alguma, ser um “peso” para ninguém, nem atrapalhar a vida dos familiares. Isso faz com que a distância entre eles e a família se intensifique.

Apesar de todas as dificuldades, ele já estava há um mês na Casa Betânia e queria mudar o curso de sua vida. “Quando eu sair daqui quero trabalhar, voltar a mexer com a área de saúde, que é o meu grande dom. Estando bem de cabeça eu sou tranquilo”, afirmou.

O interno relatou outra história que serve de exemplo como a “situação de rua” - como se referem os indigentes – pode acontecer com qualquer pessoa. “Eu tinha um amigo (de rua) muito próximo. Um dia, um carro bonitão, importado, acho, veio buscá-lo lá na calçada onde a gente ficava. Era a família dele, o cara era médico formado... Fiquei impressionado com isso”, falou. Ao final da conversa, Bira evidenciou sua fé em Deus para conseguir melhorar e se disse determinado a fazer algo de bom com a vida.

Seu caso é apenas mais um que fica encoberto pela sujeira do corpo e da invisibilidade social. Pessoas como Ubiratan enfrentam a visão das pessoas todos os dias e o costume é ignorar essa indignidade. Contudo, os moradores de rua são uma realidade, e não apenas uma característica da paisagem."



Até a próxima. Reclamem, xinguem, ou elogiem.


P.s.: Como disse que ia dar dicas de livros, sugiro o livro “Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída”. Trata-se de um best seller na década de 80 que narra a história de uma menina de treze anos viciada em heroína, talvez a mais agressiva das drogas – ilegais - junto com o crack. O livro é muito bom, a agonia das lembranças de Christiane e de sua mãe pode ser sentida a cada palavra. Não quero beatificá-la nem criticá-la, mas recomendo a leitura, que se encaixa bem com o tema de hoje.

P.s.2: Outro livro: “Guerra dentro da gente”, do poeta curitibano genial Paulo Leminski.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Pecados originais

Fazer um blog parece um clichê e, de fato, é. Mas, se pensarmos assim, um livro é um clichê. Um romance vai narrar fatos, amores, mortes, guerras, sexos, seja qual for a forma da escrita. E foi por isso que criei este blog. Para dividir e expor meus textos. Além disso, como estudante de jornalismo, ainda tentarei desafogar aqui a gigantesca quantidade de pautas que se apresentam por dia.

Meus temas são livres e aceito textos de outras pessoas que também queiram compartilhar com o mundo suas idéias sem medo de serem julgadas por isso. Os julgamentos fazem parte indissociável da vida e deixar de se movimentar por temê-los parece besteira – ainda que seja difícil ser assim tão “livre”. Vou tentar dar dicas de boas músicas e livros que me interessem – sugestões são novamente bem-vindas!

Fica, portanto, a esperança de algum leitor. Comentem, reclamem e xinguem minhas visões da vida. Ou não. Mas não deixem de pensar em tudo o que é escrito por aí e deve ser divido.


Hoje, quero falar sobre a culpa.

Problemas, questões, tabus. Tudo isso faz parte da vida e, por mais que nos esforcemos para deixá-los ocultos na obscuridade da consciência, continuam a existir. Enfrentá-los é complexo demais, sem dúvida. Debruçar-se sobre si mesmo e reconhecer falhas morais, físicas ou intelectuais é muito penoso.

Costumamos esconder nossos medos e nossas fraquezas, o que é altamente compreensível. Assim como um animal que não gosta de ser observado ao defecar, não gostamos da exposição em nossos momentos de dúvida e sobressalto das emoções. Por isso, as pessoas choram escondidas nos quartos, nos cantos, ou nos ombros de amigos – ou inimigos! -, com os rostos afundados para que se sintam menos invadidas. E sentir-se invadido é das piores coisas que pode acontecer.

O fato é que por mais que sejamos sinceros em nossas atitudes, sempre haverá no âmago de nossos pensamentos as repreensões, as cobranças, as culpas. E a culpa – como todos já devem ter experimentado – é o mais cruel dos sentimentos. Ela consome nossas decências, definha nossas vontades. Com culpa não se brinca.

E como enfrentá-la? Será que existe uma forma de se eximir, na ordem da pessoalidade, dos remorsos e das imagens que invadem nossas mentes?

Para pensar sobre isso é preciso ter muita honestidade para consigo. É o primeiro passo. Costumo pensar que sempre sabemos quando estamos errados, que sempre sentimos uma queimação ácida no estômago, mesmo que sutil, quando erramos. É claro que podemos errar sem nos dar conta disso, mas o fato é que esse tipo de vacilo é bem menos frequente.

A grande questão é saber equilibrar o peso de nossos atos nas vidas dos outros e em nós mesmos. Muitas vezes sabemos que estamos tomando uma atitude que magoará outros e mascaramos essa sensação com justificativas vazias e artificiais para podermos encarar quem somos à noite, no travesseiro. E tal fato não deixa de ser humano.

Saber viver em sociedade – e essa afirmação pode parecer absurda – não é natural. Assim como o pensamento. Em outras palavras, o ato de pensar e racionalizar é uma criação de nossa mente, que se desenvolveu com o passar do tempo. O homem só se organizou em sociedades para suprir seus desejos mais essenciais: comer e reproduzir - morrer é sempre consequência. A grande beleza do pensamento é poder transformar essa massa disforme e caótica do existência natural em sentido. Ou pelo menos tentar... Mas essa discussão cabe a outro texto.

Todavia, a questão de vivermos com outras pessoas é complexa. Porque não necessariamente é de nossa natureza sermos generosos e pensarmos em como nossas atitudes se refletirão nas vidas alheias. O problema é que existe uma linha invisível, chamada moral, que guia nossas ações. Uma conduta com códigos de comportamento para que possamos coexistir sem o caos, que desespera as pessoas por motivos óbvios.

O caos não tem forma, não tem sentido, não se importa com vida e morte e amor. E isso não entra nas cabeças humanas ( não estou aqui dizendo que eu o compreendo: longe disso!). E você deve estar achando que estou divagando demais – e talvez esteja -, mas tudo isso se liga. A culpa que temos, em geral, só existe por conta dessa conduta criada artificialmente por nossa mente – como todos os nossos outros pensamentos -, que nos adestra sobre como agir. Porém, não podemos pensar em nossas vidas sem esses códigos.

E isso se relaciona diretamente com o fato de sempre termos consciência de nossos erros, da queimação sobre a qual me referi antes. Essa conduta moral é tão intrínseca às nossas formas de viver que está presente em todos os momentos. É por isso que nosso coração por vezes bate forte quando fazemos algo e buscamos rapidamente por uma justificativa que suprima essa pulsação ofegante.

Tudo do que falei aqui se relaciona de uma forma ou outra. A sensação de invasão do cão vigiado em sua intimidade, a conduta coercitiva (mas necessária!) das relações sociais e o desencadeamento do processo de culpa.

Às pessoas tidas como felizes e tranquilas devo estar falando muita merda junta. Afinal, a culpa nunca se abateu em suas mentes, não sentiram o desamparo da culpa. E, realmente, a natureza de nossa existência não é justa e a tentativa de tornar os homens iguais vem se repetindo ao longo da história humana. Algumas pessoas simplesmente nascem mais prendadas que outras do ponto de vista natural.

Contudo, acredito que esses felizardos não sejam diferentes de todos os que sofrem e se medicam com sedativos para entorpecer a mente. Eles somente criaram uma forma de pensar capaz de mascarar suas ansiedades.

É aí que reside a questão. A culpa sempre existirá. Desde o pecado de Adão, a culpa original dos homens, a humanidade tem lutado contra esse confronto psicológico. É a busca pela salvação.

E isso me auxilia a responder a indagação de como enfrentar a culpa. Acredito, após muitos erros e acertos, que a forma mais justa consigo de mesmo de fazer isso é encará-la em sua crueza. Infelizmente, isso dói e pode ser longo e demorado, mas talvez seja a única forma de nos redimirmos de nossas faltas. Afinal, para os outros sempre podemos mentir e ocultar.

Há uma letra de uma música de Vinicius de Morais que ilustra isso: “Mas amar é sofrer/ Mas amar é morrer de dor”. E o amor, por fim, é a ilustração mais justa da vida e de como encarar a culpa.

Fico por aqui e prometo ser menos profundo em outros textos. Se alguém quiser contribuir com este blog, com outros temas, fique à vontade para mandar textos e entrar em contato.

Até a próxima.