domingo, 15 de setembro de 2013

Sobre ecos


Guardei teu nome comigo, querida.
Guardei-o por egoísmo,
para não vê-lo destruir-se
em outras bocas.

Guardei-o por tantos anos,
que se tornou apenas sussurro,
um lamento agudo
recitado em voz grave
                                                           [no fundo da mente.

Guardei o teu nome sem poder:
roubei-o para mim.
Às escuras, ainda sinto sua presença
a rondar-me espantoso.

E o teu nome, querida,
tornou-se agrura. Cruas,
as letras que antes o compunham
desmancharam-se:

- Como papel molhado.

Teu nome é meu bem
mais precioso,
que resiste aos suspiros
e às lembranças cruéis
da pronúncia.

Como se diz?
Já não sei. Agora,
é eco o que sinto
[ao ouvi-lo.


terça-feira, 14 de maio de 2013

A massa


Depois de quase um ano e meio, volto a escrever no blog. Retorno com um conto. Espero que gostem:

A massa

O corpo que caiu foi um presságio. Espatifado, no chão, era agora geléia, avermelhada e amorfa. Deformada a face, que não havia. O Centro do Rio parou para observá-lo, o corpo. O corpo era meu, e era de todos que, fixamente, o observavam. A polícia até tentou cercá-lo e cercear da visão dos transeuntes a massa disforme de fluido e carne que ali estavam expostas, como num museu. A arte suprema da morte.

Mas o corpo pertencia à multidão, que se comovia. Uns choravam, outros, sádicos, riam. De nervoso. Porque, no final das contas, aquele corpo nos pertencia, era nosso último estratagema, nossa última fuga, a doce libertação da queda, da morte pensada. “Ele pulou de costas!”, exclamavam alguns, atônitos. Retirara, antes de lançar-se aos ares, todos os espólios da vida: os sapatos, as roupas e um relógio - falso. Somente na queda havia sido o homem verdadeiro, e morreu como os homens verdadeiros: esmagado por mentiras.

“Um suicida!”, bradaram rabinos, pastores e padres a rebanhos ordenados em todos os cantos das cidades próximas. O tento sufocou a opinião pública. A capa de jornal auxiliou: a foto, perfeita, da geléia, da ignomínia última de uma vida, comprimida ao chão.

Acendi um cigarro para apreciar a obra mais nefasta que já vi em toda minha vida. Em pouco tempo, porém, o feito foi suprimido, os jornais calaram sua voz molhada de tinta e de pressão e jamais tornaram a falar do homem mais livre da cidade. O homem que se libertou nos ares, o homem que foi verdadeiro em sua derrocada vertical – e literal. Como todos, também esqueci dele. Mas a massa disforme ficou impressa em minha mente. Bastava fechar os olhos para apreendê-la, para tê-la, a massa, ao meu lado.

Nunca me esqueci da massa. 

Luciano Pádua

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O fim da utopia

O céu nublado driblava os pensamentos errantes do homem sentado à beira da janela. Estava postado à frente de um computador, o documento de Word aberto: página em branco. As idéias chegavam frágeis, esfumaçadas, mal sabia ele como começar um parágrafo. Estipulara uma cota mínima de páginas diárias – cinco - para evitar o torpor da preguiça.

Desviou um pouco da atenção. Mexeu a cabeça, coçou o saco. Se viu, nesse momento, em um desses retratos de exposição. O homem pensativo, talvez fosse esse o título. Impressionante o poder de uma fotografia. Quem olhasse para aquela fotografia sentiria automaticamente a fantástica jornada que a imagem e suas nuances proporcionam. Provavelmente os observadores da galeria onde estaria exposta a obra se entreolhariam, pedantes, arrotando as intenções artísticas do autor.

“Aqui, o artista retrata o nascimento do pensar, é uma representação autêntica da maiêutica socrática e todo o diálogo do autor com a filosofia”, diriam os guias, e as pessoas, extasiadas por aquele momento indistinto, no qual o tempo e a existência se combinavam, aplaudiriam com os olhos e as bocas abertas.

Ou simplesmente levantariam os olhos, absortos em seus smartphones, e murmurariam “ahh”, sem interesse.

Não se pode saber.

O caso foi que exatamente com essa fotografia inexistente, o homem se recordou de uma memória há muito esquecida. A lembrança vinha banhada no espesso caldo seletivo da memória, como sempre acontece, mas era viva. Ele sentiu que podia tocá-la.

Há muitos anos, estava na casa de seus pais. Devia ter uns 15, 16 anos. Na sala de estar, ele e seu pai curtiam o prazer arrastado e melancólico da tarde de um domingo. Seu pai era um intelectual, havia combatido o governo autoritário da ditadura militar. Ensinava Filosofia Clássica em universidades, lia Nieztche em alemão e Sartre em francês.

Mesmo assim, não tinha o olhar perdido e desconexo dos outros filósofos que conhecia. Era um homem de ação, agitado. Sempre buscava conectar as idéias distantes dos termos técnicos de sua profissão ao entendimento rudimentar dos leigos.

O homem, no entanto, não entendia como o pai podia ser tão conceituado em seu ramo profissional. Seminários, homenagens e louvor ao homem que rebatia a consistência filosófica de Heidegger. Mas, em casa, no convívio cotidiano, era um homem rude, simples e absolutamente comum. Por vezes, grosseiro e inconveniente.

Ele não conseguia enxergá-lo na grandeza com que lhe descreviam os amigos, os admiradores implacáveis e as alunas de sorrisos atrevidos que levavam à loucura o equilíbrio do casamento de seus pais. Seu pai parecia reservar somente para si a genialidade de seus pensamentos. E o homem, obviamente, se sentia excluído. Também queria ser um pensador, um exemplo, um mito.

Contudo, nesse domingo específico, enquanto estavam na sala de estar digerindo a moqueca capixaba do almoço e deixando o corpo amortecer vagarosamente sua substância deleitosa, o homem viu pela primeira vez seu pai agir como um pensador – seja lá o que isso signifique.

Seu olhar se havia desnorteado, ele levava nas mãos um jornal do dia, mas não o lia com a convicção de sempre, atento aos detalhes das notícias. Parecia somente passar a visão pelo papel. O homem começou a intuir e a observar, minucioso, cada movimento, cada expressão perdida.

O homem, ainda menino, perdia o interesse na música que ouvia em seu MP3 player. Baixou sorrateiramente o som, para que o pai não percebesse suas intenções. Deixou-se estar ali, deitado no sofá, imóvel, admirando o nascimento de alguma idéia grandiosa.

Seu pai parecia presenciar outra realidade. Dobrou o jornal, cruzou as pernas e levou as mãos ao queixo. Agarrou o maço de cigarros, sacou um e o acendeu sem vaidade.

Ele queria muito falar alguma coisa. Mas o que dize? Ele queria provar sua inteligência, sua astúcia; ser indiscutível. Em que pensaria o pai: novos sistemas de classificação social? Novas interpretações ontológicas? Um manifesto filosófico capaz de fazer sair da inércia a humanidade? As possibilidades eram imensas.

Ele sabia que esse era o momento decisivo. Era a encruzilhada que o elevaria ao patamar de adulto pensador e digno, capaz de mudar o mundo com suas idéias. Elaborou rapidamente um argumento baseado na escassa literatura que conhecia. Tentou abranger tudo o que sabia em uma só sentença, seu desejo era deixar o pai absorto por muitas horas tentando decifrar as reminiscências daquela afirmação.

Ensaiou mentalmente a entonação com que iniciaria sua explanação. Tudo devia ser prefeito. Frases secas, mas repletas de semântica. Ricas e simples, como devem ser as grandes premissas.

O pai já terminava o cigarro quando ele abriu a boca. O homem proferiu, decidido:

- Pai?

Seu progenitor o olhou, ainda atordoado, provavelmente envolvido pela queda metafórica que a sua interrupção havia causado. No exato momento em que abriu a boca para pronunciar as palavras que mudariam sua vida, seu pai se antecipou e disse, em sua costumeira grosseria:

- Caralho, essa moqueca da tua mãe me fodeu. Preciso muito cagar. Já volto, filho.

Saiu, abandonando o homem na sala. Ele jurou se lembrar de subir pela garganta o furor de um vômito seco, de decepção. Perplexo, permaneceu na mesma posição por alguns segundos sem saber o que fazer. Voltou à posição de aconchego no sofá, aumentou o som do MP3 Player. Era o fim da utopia.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Marcas

Uma foto expressa

o que passou e deixou,

na imagem,

sua marca


***


Porque tudo

na vida

nos deixa marcas.


Tudo permanece em seu rastro;

perfazendo a si,

sendo sem ser,

à meia luz da existência.


Assim é viver.


E assim é o amor,

que nunca inexiste.


*Música do momento: In my time of dying - Led Zeppelin

sábado, 18 de dezembro de 2010

Jogada de mestre


Postar no blog parece algo simples, mas compromissos inevitavelmente me lembram trabalho – e o resto da associação não precisa ser explicado. O fato é que estou devendo (para quem, afinal?) textos. Não posso, portanto, me abster de comentar os acontecimentos recentes que mais me chamaram a atenção: os conflitos no Rio.

***

O Rio de Janeiro é uma cidade abençoada por Deus e castigada pelo diabo. Um lar de hipocrisias conflitantes e de antagonismos coerentes. Nosso fardo é aturar a maravilha das belezas em contraste com a miséria aguda e alarmante de nossos subúrbios e das mais de 500 favelas, que, de fato, constituem a cidade.

Algumas coisas me chamam a atenção. Lembro até de um outro post desse blog, quando falei de mendigos e da invisibilidade social. Os problemas e as coisas podres existem independentemente da nossa disposição em disfarçá-los. Um caso recente dessa tentativa de atenuar a realidade exposta é a instalação dos painéis na Linha Vermelha, que pretensamente tinha como justificativa dar mais conforto aos moradores das comunidades ribeirinhas à via expressa fazendo o isolamento acústico. Sinceramente, enxugar gelo com os dinheiros – seu e meu – é uma palhaçada antiga, mas não deixa de irritar. Como disse o deputado Marcelo Freixo, um Estado que nunca se preocupou com o saneamento básico, a educação e a saúde dessas pessoas vem agora falar de conforto sonoro? Foda-se esse argumento.

Você talvez pense que eu me desviei do assunto proposto, mas não. O que aconteceu nessa “guerra” no Rio reflete um pouco disso. Demonstra como o Estado não existe em tantos locais, como se criou uma cidade dentro da outra, onde as leis não são exatas e a disposição social se adequa às dificuldades de sobrevivência das pessoas pobres e sem recursos. A população absoluta de moradores de comunidades no Brasil chega a mais de 50 milhões. No Rio, a coisa ainda se torna mais explícita porque se trata de uma cidade miscigenada e mesclada. Talvez seja a nossa mais peculiar característica: a aproximação do rico e do pobre. Um abismo social separado, às vezes, por uma rua.

A grande questão é entender que a violência na cidade não é um mal em si mesmo, é um reflexo da discrepância social gritante na qual vivemos. As favelas existem porque precisamos que existam; o indesejável se torna suportável por isso. Faz parte do próprio capitalismo.

Até aí, nada novo. Mas algo interessante de analisar é que ao longo de nossa história social desenvolvemos uma predisposição inequívoca para a desigualdade. Por isso, afirmo que os brasileiros não compreendemos o sentido de igualdade. E vou mais além: repudiamo-la. Não sou o único a dizer isso. Livros como Casa Grande e Senzala, Raízes do Brasil, Casa e Rua, Carnavais, malandros e heróis atestam isso. Faz parte do nosso ser social. Talvez seja assunto para um outro texto, mas ajuda a entender melhor como lidamos com essa questão.

Por essa dificuldade de compreensão do conceito de igualdade criamos um imaginário curioso - e contraditório com todos os discursos da modernidade. Abominamos a pena de morte, a crueldade das torturas e nos consideramos superiores a esses “retrocessos”. Contudo, acreditamos que há, em nossa sociedade, pessoas que não merecem essa consideração: cremos em seres matáveis. Ou seja, parte da população não se insere nos discursos e nas políticas públicas e simplesmente padece do descaso. A morte só é um ultraje quando atinge determinados indivíduos. O mesmo acontece com o crime, que só é uma transgressão de fato quando invade a realidade particular. Novamente, o personalismo de nossa sociedade.

***

Tendo isso em mente podemos falar da série de ataques no Rio. O jornal O Globo criou uma seção especial chamada “Guerra no Rio”, com uma foto de um tanque militar ao lado. O governo conclamou a ajuda das Forças Armadas e fez o papel de herói, a polícia conseguiu finalmente retomar uma boa imagem com a população. Tudo isso em uma semana. Um pouco estranho? Eu acho.

De fato, os números reais se destacam. Segundo dados oficiais da Polícia Militar, foram 103 veículos incendiados, 123 prisões, 205 armas apreendidas e 37 mortes no total das operações. Números impressionantes e assustadores. No entanto, durante os atentados – posso estar errado nessa informação – não houve nenhuma (ou quase nenhuma) morte. É isso que me leva ao raciocínio mais complexo: por que os bandidos decidiram iniciar essa onda de ataques?

Qualquer pessoa que leia um pouco sobre esse assunto entende facilmente que os bandidos existem, da forma como existem, como uma concessão – feita por diversos segmentos sociais. Em outras palavras, eles pagam – e muito - para não ser incomodados em suas transações. Livros como O Abusado, Cabeça de Porco, entre tantos outros, mostram isso. Disso, surge uma verdadeira instituição no Rio de Janeiro: o arrego. A palavra tem sua origem do termo espanhol arreglo, que significa ajuste, acordo. É exatamente isso o que a polícia e o Estado fazem: acordos para perpetuar um ciclo econômico muito lucrativo, como o tráfico de drogas, os esquemas das vans etc.

Essa idéia de uma aliança entre o Estado e os bandidos, que garante um equilíbrio de forcas, me leva à conclusão de que queimar dezenas de veículos em vias públicas de grande circulação e buscar instaurar a insegurança é suicídio para os bandidos (pois quebraria a tal alianca e o equilíbrio). Obviamente o Estado, nessa situação, faria seu papel de salvador e colocaria toda sua força para “limpar” a cidade da ameaça sólida apresentada. Por que, no intuito de instaurar caos e pânico, os bandidos só mandaram queimar ônibus e veículos? Eles nunca tiveram consideração com a vida alheia, por que agora hesitariam em matar? Se eles estivessem assassinando nas ruas, a repercussão seria ainda maior, o medo mais incrível, e a reação do Estado a mesma. Isso me parece meio incoerente. É como arrumar uma briga com alguém e, na hora de começar, dar um soco no próprio rosto.

Outro fato que me deixa inquieto é a justificativa de que os ataques aconteceram por causa das UPP. A política das UPP é realmente interessante, porque muda um ciclo vicioso de violência contra violência. Essa foi a resposta do governo nas últimas décadas, responder tiro com tiro. Essa demonstração de poder é muito simbólica e traz a impressão de um trabalho eficiente, que pega os “vagabundos”. O imediatismo é a chave da sensação de segurança e do trabalho bem feito. Ninguém quer pensar nas variantes complexas do assunto; livrar-se da sujeira é imprescindível para continuar a vida de disfarces e ilusões. Ilusão porque a violência existe diariamente em muitos locais, mas como a maioria das pessoas (em geral, com situação financeira melhor) não a presenciam, não se importam. Faz sentido.

As UPP são, sem dúvida, um bom primeiro passo. Mas, não se pode pensar uma cidade inteira formada de UPP. Aí, chegamos no ponto em que, das treze UPP, doze tomaram morros sob o domínio do Comando Vermelho. Parece consenso que o Estado busca derrubar o CV, o que, por sinal, é muito bom. Mas e as milícias? Os discursos se calam nesse sentido. E não estou apenas repetindo o Tropa de Elite 2, não. Sobre as UPP, acho que elas não podem ser encaradas como solução única e nem devem se estabelecer apenas no corredor turístico da cidade. As políticas têm que ser feitas para os cidadãos, e não para o Comitê Olímpico Internacional e a FIFA.

Pelos motivos supracitados, atribuir esse “suicídio” da maior facção criminosa da cidade às UPP não faz sentido. Parece muito mais um tiro no pé. E dizer que bandido é burro me parece mais estupidez. O antropólogo Luiz Eduardo Soares, no programa Roda Viva da TV Cultura, afirmou que não acredita que as ordens para os ataques tenha vindo do CV. De acordo com ele, ocorre uma investigação em sigilo de justiça para apurar os fatos.

O próprio Luiz Eduardo já declarou que o modelo de tráfico de drogas como se dá no Rio de Janeiro está em declínio. Pagar o arrego, armar um exército, disputar com outras facções o território, gerenciar a droga, tudo isso custa muito caro e está deixando de ser economicamente viável. A razão de existir do narcotráfico é ser economicamente viável, não duvido que ele encontrará brechas para se transformar e concretizar sua aptidão primeira.

***

Com esse post, quero tentar esclarecer algumas coisas que me incomodaram durante as operações da polícia. A cobertura da imprensa, a meu ver, foi boa em alguns aspectos, mas pecou em outros. Errou quando instaurou uma histeria coletiva, quando fez parecer que estávamos no Iraque. Não houve guerra civil. Houve invasão no Complexo do Alemão.

O trabalho conjunto das polícias foi interessante. No entanto, o Alemão já havia sido tomado em 2008. Acreditar que uma UPP vai ser a solução me parece ingenuidade. O que falta é a presença do Estado, com todos os seus desmembramentos, na região. Espero que aconteça, embora seja cético quanto a isso.

Os comentários que vi nas redes sociais me intrigaram muito também. A intolerância, a sede de sangue, a vontade de se livrar imediatamente do problema me fizeram concluir que os matáveis , de quem falei no começo do texto, realmente existem. O maniqueísmo das representações foi chocante: Bem X Mal, Certo X Errado. Simplificar as coisas é mais fácil para compreender e eliminar a ameaça, no caso o crime.

Nesse mérito, não serei hipócrita em dizer que devemos jogar flores aos bandidos como se fossem Iemanjá. Porra, a partir do momento em que a pessoa escolhe carregar consigo um fuzil capaz de arrancar a cabeça de um homem, não posso tratá-lo da mesma forma como trataria outro cidadão. É preciso agir com inteligência, e isso também faz parte desse raciocínio. Mas, o que chamou minha atenção foi a exaltação pela morte, pelo sangue, como se fossem animais a serem abatidos. As pessoas estavam torcendo por um genocídio.

***

Em suma, quando um governo corrupto – como todos os outros -, cujo líder já participou de palanques de milicianos no passado, faz parecer que erradicou os problemas do Rio de Janeiro de uma só vez, com doses de espetáculo de guerra e tanques blindados, alguma coisa me diz que fazemos parte de engodo bem elaborado. É extremamente mais cômodo acreditar no acerto de contas, no fim da violência, do que numa reorganização do crime.

O fato é que de uma só cajadada o Estado assumiu o papel de salvador, a imprensa transmitiu exatamente essa “retomada da justiça”, ouvindo verdades particulares e mostrando uma situação exagerada. A polícia teve, finalmente, seu trabalho reconhecido. Mas nem o exército quer ficar no Alemão com medo da “contaminação” de seus soldados; esse argumento fala por si mesmo.

Em momentos nos quais uma verdade, no caso o renascimento do Rio de Janeiro, se estabelece acima dos fatos concretos, é perigoso não analisar a situação a fundo. No mais, fica a minha esperança para que as forças transformadoras na cidade não tenham 2016 como prazo final.

Até a próxima.

domingo, 24 de outubro de 2010

Admiração

Voltei ao blog. Falta-me disposição, confesso, para introduzir um novo tema. Há tanto o que ser aqui expresso, mas tem me falhado a capacidade de depurar os pensamentos e torná-los opiniões cheias e vigorosas, como busquei antes.

Na falha de se pensar por si, pensa-se por outros. E isso é tão belo quanto humilde. Admirar a capacidade alheia é fantástico para refletirmos sobre o que, de fato, somos e quais as nossas verdadeiras habilidades.

Uma das minhas admirações mais afetuosas, quase como de tio-avô, vai ao poeta Manuel Bandeira. Sua obra me foi, e é, muito importante por conta do que diz e transparece. Ao poeta parece ser fardo a tarefa mais cansativa e complexa ao homem: transformar o que se sente, e só existe na mente, em palavras. Não à toa, a poesia é cultuada desde os primórdios de nossa história. O homem lhe é indissociável.

É bem verdade que nesse mundo de virilidade e machismos inseguros no qual vivemos há tão pouco espaço para a poesia e a sua representação da vida. A vida é tão somente uma página em branco cujo conteúdo se faz como melhor aprouver. Olhamos para ela da forma como quisermos – e pudermos, claro. Os olhares, definitivamente, dependem de tantas outras variáveis que se acabariam as linhas na tentativa de descrevê-las.

Por esse peso da poesia, por sua natureza humana e a faceta quase transcendental a ela atribuída, não posso deixar de fazer uma homenagem a Manuel Bandeira. Ele tinha a incrível capacidade de simplificar coisas aparentemente insolúveis e se expressava em uma sinceridade seca e sofrida, com a melancolia de quem vive esperando a morte. Apesar desse pessimismo que se percebe a princípio, sua obra se transmuta em uma ode à vida e ao amor simples e livre de subterfúgios medrosos.

Ao contrário do que se diz, ele sempre trilhou um caminho próprio em sua obra. De seu início parnasiano cuidadoso ao fim de obra em versos livres e "modernistas", Bandeira foi um "tio" aos poetas modernistas brasileiros, que tiveram nele grande aliado. Seu compromisso com sua arte era ardoroso e ele o cobrava assim de outros artistas, como Vinicius de Moraes, que se tornou grande admirador de sua literatura e sempre apontou o amigo como o poeta brasileiro que mais o influenciou em suas criações.

Separei duas obras do grande poeta: A morte absoluta e Belo belo.

A morte absoluta nos faz sentir uma melancolia recatada, porque trata de morte e do medo primordial de se ir e deixar aqui, no mundo, o espólio inacabado do que se fez e tentou fazer. Demonstra o medo da fragilidade da carne e o absurdo de simplesmente não haver nada além, de interromper-se o existir para surgir a ausência.

Já em Belo belo aparece essa característica precisa e simples de Bandeira. Ele se desfaz das arrogâncias, de todos os acessórios que julgamos ser necessário à rotina, para se entregar à beleza das coisas mais ingênuas. Somente na poesia se pode tirar dos ombros tal peso.

Se quiserem compartilhar suas opiniões sobre os poemas e/ou criticar a minha falta de criatividade, fiquem à vontade.

A morte absoluta


Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.


Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.


Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?


Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.


Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."


Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

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Belo Belo


Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.


Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas estrelas cadentes.


A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.


O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.


Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.


Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.


As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.


Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.


— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.


A quem interessar mais da poesia de Manuel Bandeira, sugiro os poemas Madrigal melancólico, Profundamente, Vulgívaga, Os sapos, Desencanto, Testamento, Vou-me embora pra Pasárgada, Estrela da vida inteira, Poema do beco, Arte de amar...

É isso, gente. Fico aqui, até a próxima.


domingo, 10 de outubro de 2010

Crítica de filme?


"A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida" - Vinicius de Moraes

Sendo fiel à promessa de ser constante, volto a postar aqui. Vai ser difícil ofuscar o sentimento do último post, mas a vida existe e persiste, como dizem muitos. É necessário ir além das reminiscências e das pedras do caminho. Ao menos, parece isso ser o certo a se fazer.

Assisti a Wall Street - o dinheiro nunca dorme e ele me fez refletir bastante, especialmente sobre um tema que sempre paira nas conversas, nos sorrisos e nas felicidades (por que não?) de todos: dinheiro.

O cinema traz consigo um pacote de pensamentos e reflexões. E é impressionante a sua capacidade de nos desconstruir em tão pouco tempo. Wall Street faz um passeio estonteante e veloz pelo mundo enigmático da grande economia. Retrata as pessoas que nós, reles mortais, julgamos não serem reais. Se pensarmos bem, é compreensível. Não parece haver limites a suas vidas. A obsessão, a guerra, os orgulhos poderosos, tudo se congrega para criar uma realidade mutiladora e atroz, onde o dinheiro foi há muito esquecido e o que importa é a sensação de estar em si frente aos outros, ou seja, ser invencível. A invencibilidade remete à imortalidade e não é nem necessário explicar por que ela é tão almejada.

A falta de limites que os personagens transmitem, apesar de serem caçados por diversos censores, como o governo, causa uma grande contradição, pelo menos em mim. Por mais que a publicidade insista em nos vender as impossibilidades de uma vida livre e ousada, cada vez mais sinto as pessoas atadas a valores e necessidades abertamente opostas.

Por exemplo, quando se passeia por um Shopping Center. O que lá existe? Existe uma vida que não é a minha, tampouco a sua. Vende-se imagens, estereótipos, objetos, fotografias e roupas que vão se entranhando lentamente aos gostos das pessoas. Consumir é humano e é justo, faz parte de pertencer à nossa sociedade. O problema é o excesso, a desmedida (ou a Hybris como quiseram os gregos).

Os gregos, por sinal, acreditavam piamente no equilíbrio entre as forças da natureza e, por isso, do homem. Dessa forma, se houvesse numa cidade alguém suficientemente bom para ser muito superior a todos os outros, ele era expulso da polis para evitar a hybris dos sentimentos, como a inveja e a discórdia – era uma forma de se cortar o mal pela raiz. Nós, pelo contrário, insuflamos o excesso. Enfim, até aí, nada de novo.

Mas, o que acontece com aqueles que não podem consumir? Aqueles que vagam a esmo pelos corredores perfumados e aromatizados com cheiros que os próprios narizes nunca sentirão em suas casas; aqueles que são outros quando falamos sobre eles, mas que podem ser nós quando formos sinceros com nossas possibilidades. Não resta nada. O shopping se torna um amontoado de vontades congruentes e insaciáveis. Nós somos insaciáveis, se precisarmos. E esse é o meu link com o filme.

Wall Street narra a história dos bastidores da ganância e do poder, representado pelo dinheiro. A atuação brilhante de Michael Douglas e, especialmente, a natureza demasiado humana de seu personagem conseguem até se sobrepor ao final demasiado palatável - mas justo, ao final das contas. Os planos escolhidos pelo diretor me trouxeram um pouco da asfixia e da vertigem do ambiente retratado. A velocidade e a ferocidade embutida nos diálogos aparentemente corteses sugerem um emaranhado de mistérios, conspirações e intrigas, que, por si só, garantem um bom enredo. Gostei e indico.

No entanto, me fez refletir muito o personagem de Douglas, Gordon Grekko. Principalmente em suas falas. Em um momento ele compara o dinheiro a uma puta sem humanidade, que se não for devidamente vigiada se vai e nunca volta. Isso demonstra uma necessidade insistente e arrebatadora de se massagear um ego que não cabe em si mesmo. Tal fato está relacionado com a busca pelo poder e pela vaidade, que se utiliza do dinheiro como um artifício para fazer valer outras motivações díspares do que se pode pensar sobre a riqueza.

Nesse sentido, surge o dinheiro. O que é, afinal, o dinheiro? Muitos vão me dizer que é a solução dos problemas e outros vão ser audaciosos o suficiente (como já fui muitas vezes) e dizer que ele não traz felicidade. Que se fodam os clichês. Sim, o dinheiro é importante. Toda a vida se pauta nele, naquilo que ele proporciona. É aí que gosto de ver a questão. O dinheiro não é um fim em si mesmo, mas, ao contrário, um meio para fins outros.

O filósofo alemão Edmund Husserl introduziu uma forma muito interessante de se analisar a realidade. Ele dizia que a verdade das coisas nos era impossível de ser compreendida porque o exterior e as coisas que vemos nele impedem de se extrair a verdade ou a essência daquilo que vemos. Assim, o objeto em questão se "contamina". Então, ele propôs uma forma, com vários métodos, de se buscar extrair das coisas aquilo que as tornava "impura". A isso se denominou redução fenomenológica.

Por isso, é necessário fazer uma redução fenomenológica, em seus devidos termos, em relação ao dinheiro. Por que devemos tê-lo? Ele faz feliz. E por que? Porque nos permite ter acesso às coisas, ao consumo, à tranqüilidade de uma vida rica e farta. Na verdade, o papel pouco importa. Seu valor não está no lastro, mas em suas conseqüências.

O dinheiro nos leva a um mundo sem dificuldades, onde parece ser mais fácil se embeber de felicidade. Afinal, a felicidade e a realização são os fins últimos de nossa existência. Representam talvez a única forma de poder dizer, e com sinceridade, em seu último suspiro: “Eu aproveitei a minha vida. Fiz valer cada segundo que me houve”. Esse é o desejo mais persistente na cabeça, ainda que seja mórbido, mas quem disse que a vida não é?

Entre tantas pretensas vontades e desejos, surge o dinheiro como o instrumento, o arauto de esperança da vida vazia. Vale ressaltar que novamente o problema não está no dinheiro, ele não é maligno. Por sinal, ele não quer nada, é um mero meio. O problema - se isso for um problema e não uma materialidade inequívoca - está em quem o utiliza.

Uma das frases de Gekko ficou em minha cabeça por sua incrível realidade. Quando ele diz à filha que ela precisa give a break (não soube como traduzir com precisão, mas é algo como dar uma trégua) às pessoas porque elas são um misto de coisas que não entendem, simplesmente faz um resumo muito fiel do que somos e como funcionam nossas motivações. Se tantos se sentem perdidos, por que esperar sempre por atitudes encontradas?

A vida se faz por cima do encontros e desencontros.

Fico por aqui e até a próxima.