terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O fim da utopia

O céu nublado driblava os pensamentos errantes do homem sentado à beira da janela. Estava postado à frente de um computador, o documento de Word aberto: página em branco. As idéias chegavam frágeis, esfumaçadas, mal sabia ele como começar um parágrafo. Estipulara uma cota mínima de páginas diárias – cinco - para evitar o torpor da preguiça.

Desviou um pouco da atenção. Mexeu a cabeça, coçou o saco. Se viu, nesse momento, em um desses retratos de exposição. O homem pensativo, talvez fosse esse o título. Impressionante o poder de uma fotografia. Quem olhasse para aquela fotografia sentiria automaticamente a fantástica jornada que a imagem e suas nuances proporcionam. Provavelmente os observadores da galeria onde estaria exposta a obra se entreolhariam, pedantes, arrotando as intenções artísticas do autor.

“Aqui, o artista retrata o nascimento do pensar, é uma representação autêntica da maiêutica socrática e todo o diálogo do autor com a filosofia”, diriam os guias, e as pessoas, extasiadas por aquele momento indistinto, no qual o tempo e a existência se combinavam, aplaudiriam com os olhos e as bocas abertas.

Ou simplesmente levantariam os olhos, absortos em seus smartphones, e murmurariam “ahh”, sem interesse.

Não se pode saber.

O caso foi que exatamente com essa fotografia inexistente, o homem se recordou de uma memória há muito esquecida. A lembrança vinha banhada no espesso caldo seletivo da memória, como sempre acontece, mas era viva. Ele sentiu que podia tocá-la.

Há muitos anos, estava na casa de seus pais. Devia ter uns 15, 16 anos. Na sala de estar, ele e seu pai curtiam o prazer arrastado e melancólico da tarde de um domingo. Seu pai era um intelectual, havia combatido o governo autoritário da ditadura militar. Ensinava Filosofia Clássica em universidades, lia Nieztche em alemão e Sartre em francês.

Mesmo assim, não tinha o olhar perdido e desconexo dos outros filósofos que conhecia. Era um homem de ação, agitado. Sempre buscava conectar as idéias distantes dos termos técnicos de sua profissão ao entendimento rudimentar dos leigos.

O homem, no entanto, não entendia como o pai podia ser tão conceituado em seu ramo profissional. Seminários, homenagens e louvor ao homem que rebatia a consistência filosófica de Heidegger. Mas, em casa, no convívio cotidiano, era um homem rude, simples e absolutamente comum. Por vezes, grosseiro e inconveniente.

Ele não conseguia enxergá-lo na grandeza com que lhe descreviam os amigos, os admiradores implacáveis e as alunas de sorrisos atrevidos que levavam à loucura o equilíbrio do casamento de seus pais. Seu pai parecia reservar somente para si a genialidade de seus pensamentos. E o homem, obviamente, se sentia excluído. Também queria ser um pensador, um exemplo, um mito.

Contudo, nesse domingo específico, enquanto estavam na sala de estar digerindo a moqueca capixaba do almoço e deixando o corpo amortecer vagarosamente sua substância deleitosa, o homem viu pela primeira vez seu pai agir como um pensador – seja lá o que isso signifique.

Seu olhar se havia desnorteado, ele levava nas mãos um jornal do dia, mas não o lia com a convicção de sempre, atento aos detalhes das notícias. Parecia somente passar a visão pelo papel. O homem começou a intuir e a observar, minucioso, cada movimento, cada expressão perdida.

O homem, ainda menino, perdia o interesse na música que ouvia em seu MP3 player. Baixou sorrateiramente o som, para que o pai não percebesse suas intenções. Deixou-se estar ali, deitado no sofá, imóvel, admirando o nascimento de alguma idéia grandiosa.

Seu pai parecia presenciar outra realidade. Dobrou o jornal, cruzou as pernas e levou as mãos ao queixo. Agarrou o maço de cigarros, sacou um e o acendeu sem vaidade.

Ele queria muito falar alguma coisa. Mas o que dize? Ele queria provar sua inteligência, sua astúcia; ser indiscutível. Em que pensaria o pai: novos sistemas de classificação social? Novas interpretações ontológicas? Um manifesto filosófico capaz de fazer sair da inércia a humanidade? As possibilidades eram imensas.

Ele sabia que esse era o momento decisivo. Era a encruzilhada que o elevaria ao patamar de adulto pensador e digno, capaz de mudar o mundo com suas idéias. Elaborou rapidamente um argumento baseado na escassa literatura que conhecia. Tentou abranger tudo o que sabia em uma só sentença, seu desejo era deixar o pai absorto por muitas horas tentando decifrar as reminiscências daquela afirmação.

Ensaiou mentalmente a entonação com que iniciaria sua explanação. Tudo devia ser prefeito. Frases secas, mas repletas de semântica. Ricas e simples, como devem ser as grandes premissas.

O pai já terminava o cigarro quando ele abriu a boca. O homem proferiu, decidido:

- Pai?

Seu progenitor o olhou, ainda atordoado, provavelmente envolvido pela queda metafórica que a sua interrupção havia causado. No exato momento em que abriu a boca para pronunciar as palavras que mudariam sua vida, seu pai se antecipou e disse, em sua costumeira grosseria:

- Caralho, essa moqueca da tua mãe me fodeu. Preciso muito cagar. Já volto, filho.

Saiu, abandonando o homem na sala. Ele jurou se lembrar de subir pela garganta o furor de um vômito seco, de decepção. Perplexo, permaneceu na mesma posição por alguns segundos sem saber o que fazer. Voltou à posição de aconchego no sofá, aumentou o som do MP3 Player. Era o fim da utopia.

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