segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Fragilidade

Opa,

Voltei a postar por aqui. Falei que ia manter uma regularidade, mas é difícil driblar a preguiça.

Hoje farei algo diferente do último (e único) post. Vou falar sobre uma matéria que fiz na faculdade, na qual tive a oportunidade de conhecer ex-moradores de rua e aprender um pouco mais de suas vidas e dificuldades.

A matéria foi colada abaixo. Mas antes, uma pequena reflexão.

Nossos olhares acabam se acostumando a ver mendigos, pivetes, e até mesmo as palavras que os designam são de certo modo pejorativas e causam um pouco de asco. O choque parece inevitável, as coisas, afinal, são como são. É difícil esquecer as roupas sujas, a aparência deplorável e o preconceito natural para com aquilo que nos é tão distinto.

Contudo, tenho mudado bastante minha visão das coisas. De fato, ninguém é santo e fazer uma análise maniqueísta, na qual pobres são coitados e os ricos são predadores vorazes da felicidade da classe oprimida, não me apetece. Acredito mais na proporcionalidade dos fatos. Uma pessoa se torna quem é por vários fatores e, sem dúvida, a classe social é determinante, na grande maioria dos casos, para a formação de um indivíduo. Mas há tantos exemplos que podem me contrariar...

Ter dinheiro, ter uma boa base familiar, tudo isso parece ser muito importante para que uma pessoa não chegue ao fundo do poço, se afundando no consumo de drogas e afrontando suas convicções para viver uma vida que considera indigna. Sem dúvida, o fato de se tornar um morador de rua está relacionado com problemas graves na formação pessoal e psicológica de alguém. No entanto, muitas vezes gente que tem tudo acaba se perdendo dentro do vão que existe dentro de nós mesmos.

Concordo que estou pisando em conceitos complexos e maleáveis. Afinal, cada um decidirá por si o que é “estar perdido" na vida. Cada pessoa define a seu gosto o ideal de vida que pretender ter como sua. Entretanto, havemos de concordar que existe um padrão – que, por sinal, é estudado e pensado desde os gregos antigos. O padrão é que todos buscam a salvação para a vida, porque a vida sempre termina em morte, e assim há de ser. Ser feliz, seja lá o que isso signifique, é um desafio imposto pela brevidade de nossa existência; ora, temos que fazer nosso "pouco tempo" valer, a vida é curta e o tempo urge. E isso acaba fazendo algumas pessoas se afogarem nas próprias armadilhas. (essa discussão também deságua em religião, ética, entre tantos outros assuntos que pretendo debater aqui, mas abordo por enquanto somente este lado da moeda.)

Quando nossas agonias encontram um consolo movediço, que é o caso das drogas, as coisas podem ruir de uma forma como nunca esperamos. As drogas, sem dúvida, trarão um alento momentâneo – vale lembrar aqui que não somente elas são assim e, portanto, não as estou demonizando -, seguido muitas vezes de uma lacuna muito grande que a vida sem ela não pode preencher. E é exatamente aí que a coisa degringola. Os impulsos de estar bem consigo mesmo, ou querer esquecer as intempéries que chegam em contas atrasadas, em mortes prematuras, em doenças incuráveis, entre tantas outras moléstias que a vida proporciona, fazem as perspectivas e os limites se relativizarem.

O meu ponto é fragilidade da vida como a concebemos. O que hoje parece ser imutável pode se tornar uma lástima, uma decepção terrível, sem aviso prévio. Coisa simples: imagine-se numa festa e começa uma briga. Você está na sua, mas alguma outra pessoa vem bater em você ou em algum amigo seu. Você se defende (ou defende o seu amigo) por impulso, por reflexo natural. Esse impulso é machucar o atacante. O cara que ia te bater morre com isso (estou exagerando, claro). E agora? Simples, fudeu tudo. Se você não tiver influência e muito dinheiro pode parar na cadeia e dificilmente sua vida volta aos trilhos cujo caminho você gostaria de percorrer. E tudo isso assim: de supetão, numa manobra rápida das coisas.

Por fim, fica essa reflexão sobre a fragilidade (e a frugalidade, por que não?) daquilo que nos cerca. Morte, doença, loucura, vício, ganância, todos esses fatos aos quais estamos expostos e utilizamos para estarmos presentes no mundo. Esse emaranhado de acontecimentos concomitantes deixa muita gente atordoada ao ponto de perder o controle de suas ações e de suas vontades. E nós, por mais que pensemos estar acima de tudo isso, não somos imunes aos perjúrios de viver.

No próximo post vou tentar falar do lado bom da vida também. Nem tudo é merda, aliás há muito de bom, principalmente o fato de estar vivo.

A matéria:

"Parte da paisagem

Os moradores de rua estão em todos os lugares. Nos bancos, debaixo de marquises, nas calçadas. Da zona sul à baixada. Tornaram-se parte integrante da paisagem. Eles estão tão presentes no cotidiano que as pessoas esquecem deles. Não reparam que são pessoas com histórias de vida únicas e passaram por fatos inacreditáveis para estarem naquela situação.

É o caso de Ubiratan, 47 anos, ex-morador de rua, que vive agora numa instituição de reabilitação social. Bira, como diz ser chamado, tem uma história de vida extraordinária – no sentido mais fora do comum possível. Contemplando seu rosto desacreditado é possível ver as marcas de um passado sofrido. Seu olhar é profundo, tendo inclusive as retinas azuladas devido ao álcool. Seus movimentos também foram prejudicados e anda com a ajuda de uma muleta.

Ao longo da conversa, ele fez questão de dizer que era diferente dos outros internos da Casa Betânia, instituição de reinserção social para moradores de rua. Relatou que viera de uma família de classe média e trabalhava como enfermeiro até as drogas, o álcool e sua própria perturbação interromperem sua vida.

Bira em sua terapia ocupacional

Com um jeito brincalhão, mas um pouco incomodado, ele nos contou sobre sua trajetória. Com um bom português, afirmou que sempre gostou de “andar por aí” e teve grande dificuldade de dormir desde criança. Assim, saía à noite para andar e pensar sobre a vida. Disse que passou um ano viajando “pelo mundo” com 18 anos. Seu pai, músico profissional, lhe deu uma educação bastante flexível.

Depois disso, ele disse ter feito um curso de enfermagem e se alistado no exército. Sua vida ia tranquila até o momento. “Eu gostava de beber, claro, mas só umas cervejinhas. Drogas? Eu só usava maconha porque me relaxava. Eu tinha um bom relacionamento com todo mundo lá no quartel”, contou.

No entanto, a morte da mãe trouxe complicações psicológicas muito comprometedoras para ele. O alcoolismo e a dependência das drogas começou nesse momento. “Eu sempre fui meio perturbado. Nunca dormi direito, sempre tive esses pensamentos estranhos... Quando minha mãe morreu, eu caí numa depressão profunda. Comecei a beber e a cheirar muito. A vida foi complicando."

Ao mesmo tempo, foi acusado de um crime, do qual jura não ter participado. “Um dia, o soldado que fazia a faxina do quartel me pediu para ajudá-lo a jogar fora o resto de gesso. Achei estranho o peso do saco, mas concordei. Não tive maldade. Quando a gente saiu, ele começou a andar em direção ao carro dele, não entendi bem. Foi aí que o capitão mandou a gente parar e viu o que havia no saco: metralhadoras, pistolas, munição...”, relatou com tristeza. “Aí não teve jeito. Vou falar o quê? Fui preso, mas me inocentaram um ano depois.”

A prisão por contrabando agravou seu estado. Ao sair da clausura, mergulhou na bebida e na cocaína. Sua inquietação mental era tanta que tentou se suicidar uma vez, sendo salvo pelo acaso. “Eu estava num hotel da Central do Brasil e fui tomar formicida com Coca-Cola para me matar. Quando saí para comprar o formicida, encontrei um antigo tenente do quartel onde eu servia. Ele me reconheceu e me achou esquisito demais. Voltei pro meu quarto, tomei o veneno e esperei morrer. Por sorte, o tenente veio com dois guardas até o meu hotel, me achou e impediu minha morte”, disse Bira.

Ele não foi preciso quanto às datas, mas tinha cerca de 26 anos na época. Desde então, oscilou entre a casa, numa favela da zona norte, e as ruas. Ele disse que na vida de um morador de rua os dias são felizes e agitados, mas as noites frias e perigosas. “O dia é a melhor coisa, dá para bater papo, beber, ficar numa boa. Ninguém te faz mal. De noite a coisa muda. É um inferno, gente que te rouba, te bate, maltrata. Por isso, eu sempre tentei ficar sozinho, na minha”. Além disso, destacou o álcool como a pior das drogas. Segundo contou, a bebida pode ser conseguida em qualquer lugar, é barata, tira a fome e não há repressão contra seu uso. Ele até lembrou de um policial que pagava bebida aos moradores de rua.

Bira confirmou ter uma irmã com quem não gosta de ficar porque não tem boa relação com o cunhado. Como muitos outros internos da instituição, argumentaram que não desejavam, de forma alguma, ser um “peso” para ninguém, nem atrapalhar a vida dos familiares. Isso faz com que a distância entre eles e a família se intensifique.

Apesar de todas as dificuldades, ele já estava há um mês na Casa Betânia e queria mudar o curso de sua vida. “Quando eu sair daqui quero trabalhar, voltar a mexer com a área de saúde, que é o meu grande dom. Estando bem de cabeça eu sou tranquilo”, afirmou.

O interno relatou outra história que serve de exemplo como a “situação de rua” - como se referem os indigentes – pode acontecer com qualquer pessoa. “Eu tinha um amigo (de rua) muito próximo. Um dia, um carro bonitão, importado, acho, veio buscá-lo lá na calçada onde a gente ficava. Era a família dele, o cara era médico formado... Fiquei impressionado com isso”, falou. Ao final da conversa, Bira evidenciou sua fé em Deus para conseguir melhorar e se disse determinado a fazer algo de bom com a vida.

Seu caso é apenas mais um que fica encoberto pela sujeira do corpo e da invisibilidade social. Pessoas como Ubiratan enfrentam a visão das pessoas todos os dias e o costume é ignorar essa indignidade. Contudo, os moradores de rua são uma realidade, e não apenas uma característica da paisagem."



Até a próxima. Reclamem, xinguem, ou elogiem.


P.s.: Como disse que ia dar dicas de livros, sugiro o livro “Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída”. Trata-se de um best seller na década de 80 que narra a história de uma menina de treze anos viciada em heroína, talvez a mais agressiva das drogas – ilegais - junto com o crack. O livro é muito bom, a agonia das lembranças de Christiane e de sua mãe pode ser sentida a cada palavra. Não quero beatificá-la nem criticá-la, mas recomendo a leitura, que se encaixa bem com o tema de hoje.

P.s.2: Outro livro: “Guerra dentro da gente”, do poeta curitibano genial Paulo Leminski.

3 comentários:

  1. Tu escreve bem Luciano.

    Quem diria que em alguma coisa tu daria certo!!?

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  2. Estou abismado com a sua clareza... Não só na hora de escrever, mas na hora de pensar também. As coisas lhe são transparentes.

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  3. É sempre louvável - nem poderia ser diferente - quando alguem se propõe ao exercício do grande veículo da evolução humana, ainda que esse seja também uma ponte direta ao sofrimento. Para pensar, é preciso ter coragem.
    Por enquanto, só passei pra marcar presença. Prometo contribuir mais e melhor nos próximos comentários.

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