sábado, 18 de dezembro de 2010

Jogada de mestre


Postar no blog parece algo simples, mas compromissos inevitavelmente me lembram trabalho – e o resto da associação não precisa ser explicado. O fato é que estou devendo (para quem, afinal?) textos. Não posso, portanto, me abster de comentar os acontecimentos recentes que mais me chamaram a atenção: os conflitos no Rio.

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O Rio de Janeiro é uma cidade abençoada por Deus e castigada pelo diabo. Um lar de hipocrisias conflitantes e de antagonismos coerentes. Nosso fardo é aturar a maravilha das belezas em contraste com a miséria aguda e alarmante de nossos subúrbios e das mais de 500 favelas, que, de fato, constituem a cidade.

Algumas coisas me chamam a atenção. Lembro até de um outro post desse blog, quando falei de mendigos e da invisibilidade social. Os problemas e as coisas podres existem independentemente da nossa disposição em disfarçá-los. Um caso recente dessa tentativa de atenuar a realidade exposta é a instalação dos painéis na Linha Vermelha, que pretensamente tinha como justificativa dar mais conforto aos moradores das comunidades ribeirinhas à via expressa fazendo o isolamento acústico. Sinceramente, enxugar gelo com os dinheiros – seu e meu – é uma palhaçada antiga, mas não deixa de irritar. Como disse o deputado Marcelo Freixo, um Estado que nunca se preocupou com o saneamento básico, a educação e a saúde dessas pessoas vem agora falar de conforto sonoro? Foda-se esse argumento.

Você talvez pense que eu me desviei do assunto proposto, mas não. O que aconteceu nessa “guerra” no Rio reflete um pouco disso. Demonstra como o Estado não existe em tantos locais, como se criou uma cidade dentro da outra, onde as leis não são exatas e a disposição social se adequa às dificuldades de sobrevivência das pessoas pobres e sem recursos. A população absoluta de moradores de comunidades no Brasil chega a mais de 50 milhões. No Rio, a coisa ainda se torna mais explícita porque se trata de uma cidade miscigenada e mesclada. Talvez seja a nossa mais peculiar característica: a aproximação do rico e do pobre. Um abismo social separado, às vezes, por uma rua.

A grande questão é entender que a violência na cidade não é um mal em si mesmo, é um reflexo da discrepância social gritante na qual vivemos. As favelas existem porque precisamos que existam; o indesejável se torna suportável por isso. Faz parte do próprio capitalismo.

Até aí, nada novo. Mas algo interessante de analisar é que ao longo de nossa história social desenvolvemos uma predisposição inequívoca para a desigualdade. Por isso, afirmo que os brasileiros não compreendemos o sentido de igualdade. E vou mais além: repudiamo-la. Não sou o único a dizer isso. Livros como Casa Grande e Senzala, Raízes do Brasil, Casa e Rua, Carnavais, malandros e heróis atestam isso. Faz parte do nosso ser social. Talvez seja assunto para um outro texto, mas ajuda a entender melhor como lidamos com essa questão.

Por essa dificuldade de compreensão do conceito de igualdade criamos um imaginário curioso - e contraditório com todos os discursos da modernidade. Abominamos a pena de morte, a crueldade das torturas e nos consideramos superiores a esses “retrocessos”. Contudo, acreditamos que há, em nossa sociedade, pessoas que não merecem essa consideração: cremos em seres matáveis. Ou seja, parte da população não se insere nos discursos e nas políticas públicas e simplesmente padece do descaso. A morte só é um ultraje quando atinge determinados indivíduos. O mesmo acontece com o crime, que só é uma transgressão de fato quando invade a realidade particular. Novamente, o personalismo de nossa sociedade.

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Tendo isso em mente podemos falar da série de ataques no Rio. O jornal O Globo criou uma seção especial chamada “Guerra no Rio”, com uma foto de um tanque militar ao lado. O governo conclamou a ajuda das Forças Armadas e fez o papel de herói, a polícia conseguiu finalmente retomar uma boa imagem com a população. Tudo isso em uma semana. Um pouco estranho? Eu acho.

De fato, os números reais se destacam. Segundo dados oficiais da Polícia Militar, foram 103 veículos incendiados, 123 prisões, 205 armas apreendidas e 37 mortes no total das operações. Números impressionantes e assustadores. No entanto, durante os atentados – posso estar errado nessa informação – não houve nenhuma (ou quase nenhuma) morte. É isso que me leva ao raciocínio mais complexo: por que os bandidos decidiram iniciar essa onda de ataques?

Qualquer pessoa que leia um pouco sobre esse assunto entende facilmente que os bandidos existem, da forma como existem, como uma concessão – feita por diversos segmentos sociais. Em outras palavras, eles pagam – e muito - para não ser incomodados em suas transações. Livros como O Abusado, Cabeça de Porco, entre tantos outros, mostram isso. Disso, surge uma verdadeira instituição no Rio de Janeiro: o arrego. A palavra tem sua origem do termo espanhol arreglo, que significa ajuste, acordo. É exatamente isso o que a polícia e o Estado fazem: acordos para perpetuar um ciclo econômico muito lucrativo, como o tráfico de drogas, os esquemas das vans etc.

Essa idéia de uma aliança entre o Estado e os bandidos, que garante um equilíbrio de forcas, me leva à conclusão de que queimar dezenas de veículos em vias públicas de grande circulação e buscar instaurar a insegurança é suicídio para os bandidos (pois quebraria a tal alianca e o equilíbrio). Obviamente o Estado, nessa situação, faria seu papel de salvador e colocaria toda sua força para “limpar” a cidade da ameaça sólida apresentada. Por que, no intuito de instaurar caos e pânico, os bandidos só mandaram queimar ônibus e veículos? Eles nunca tiveram consideração com a vida alheia, por que agora hesitariam em matar? Se eles estivessem assassinando nas ruas, a repercussão seria ainda maior, o medo mais incrível, e a reação do Estado a mesma. Isso me parece meio incoerente. É como arrumar uma briga com alguém e, na hora de começar, dar um soco no próprio rosto.

Outro fato que me deixa inquieto é a justificativa de que os ataques aconteceram por causa das UPP. A política das UPP é realmente interessante, porque muda um ciclo vicioso de violência contra violência. Essa foi a resposta do governo nas últimas décadas, responder tiro com tiro. Essa demonstração de poder é muito simbólica e traz a impressão de um trabalho eficiente, que pega os “vagabundos”. O imediatismo é a chave da sensação de segurança e do trabalho bem feito. Ninguém quer pensar nas variantes complexas do assunto; livrar-se da sujeira é imprescindível para continuar a vida de disfarces e ilusões. Ilusão porque a violência existe diariamente em muitos locais, mas como a maioria das pessoas (em geral, com situação financeira melhor) não a presenciam, não se importam. Faz sentido.

As UPP são, sem dúvida, um bom primeiro passo. Mas, não se pode pensar uma cidade inteira formada de UPP. Aí, chegamos no ponto em que, das treze UPP, doze tomaram morros sob o domínio do Comando Vermelho. Parece consenso que o Estado busca derrubar o CV, o que, por sinal, é muito bom. Mas e as milícias? Os discursos se calam nesse sentido. E não estou apenas repetindo o Tropa de Elite 2, não. Sobre as UPP, acho que elas não podem ser encaradas como solução única e nem devem se estabelecer apenas no corredor turístico da cidade. As políticas têm que ser feitas para os cidadãos, e não para o Comitê Olímpico Internacional e a FIFA.

Pelos motivos supracitados, atribuir esse “suicídio” da maior facção criminosa da cidade às UPP não faz sentido. Parece muito mais um tiro no pé. E dizer que bandido é burro me parece mais estupidez. O antropólogo Luiz Eduardo Soares, no programa Roda Viva da TV Cultura, afirmou que não acredita que as ordens para os ataques tenha vindo do CV. De acordo com ele, ocorre uma investigação em sigilo de justiça para apurar os fatos.

O próprio Luiz Eduardo já declarou que o modelo de tráfico de drogas como se dá no Rio de Janeiro está em declínio. Pagar o arrego, armar um exército, disputar com outras facções o território, gerenciar a droga, tudo isso custa muito caro e está deixando de ser economicamente viável. A razão de existir do narcotráfico é ser economicamente viável, não duvido que ele encontrará brechas para se transformar e concretizar sua aptidão primeira.

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Com esse post, quero tentar esclarecer algumas coisas que me incomodaram durante as operações da polícia. A cobertura da imprensa, a meu ver, foi boa em alguns aspectos, mas pecou em outros. Errou quando instaurou uma histeria coletiva, quando fez parecer que estávamos no Iraque. Não houve guerra civil. Houve invasão no Complexo do Alemão.

O trabalho conjunto das polícias foi interessante. No entanto, o Alemão já havia sido tomado em 2008. Acreditar que uma UPP vai ser a solução me parece ingenuidade. O que falta é a presença do Estado, com todos os seus desmembramentos, na região. Espero que aconteça, embora seja cético quanto a isso.

Os comentários que vi nas redes sociais me intrigaram muito também. A intolerância, a sede de sangue, a vontade de se livrar imediatamente do problema me fizeram concluir que os matáveis , de quem falei no começo do texto, realmente existem. O maniqueísmo das representações foi chocante: Bem X Mal, Certo X Errado. Simplificar as coisas é mais fácil para compreender e eliminar a ameaça, no caso o crime.

Nesse mérito, não serei hipócrita em dizer que devemos jogar flores aos bandidos como se fossem Iemanjá. Porra, a partir do momento em que a pessoa escolhe carregar consigo um fuzil capaz de arrancar a cabeça de um homem, não posso tratá-lo da mesma forma como trataria outro cidadão. É preciso agir com inteligência, e isso também faz parte desse raciocínio. Mas, o que chamou minha atenção foi a exaltação pela morte, pelo sangue, como se fossem animais a serem abatidos. As pessoas estavam torcendo por um genocídio.

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Em suma, quando um governo corrupto – como todos os outros -, cujo líder já participou de palanques de milicianos no passado, faz parecer que erradicou os problemas do Rio de Janeiro de uma só vez, com doses de espetáculo de guerra e tanques blindados, alguma coisa me diz que fazemos parte de engodo bem elaborado. É extremamente mais cômodo acreditar no acerto de contas, no fim da violência, do que numa reorganização do crime.

O fato é que de uma só cajadada o Estado assumiu o papel de salvador, a imprensa transmitiu exatamente essa “retomada da justiça”, ouvindo verdades particulares e mostrando uma situação exagerada. A polícia teve, finalmente, seu trabalho reconhecido. Mas nem o exército quer ficar no Alemão com medo da “contaminação” de seus soldados; esse argumento fala por si mesmo.

Em momentos nos quais uma verdade, no caso o renascimento do Rio de Janeiro, se estabelece acima dos fatos concretos, é perigoso não analisar a situação a fundo. No mais, fica a minha esperança para que as forças transformadoras na cidade não tenham 2016 como prazo final.

Até a próxima.

Um comentário:

  1. Eu talvez seria do grupo que joga rosas pros bandidos, porque acredito que ele é fruto de um sistema muito maior. Ingenuidade? Talvez não. Claro que não vou ficar passando mão na cabeça de criminoso, mas não posso deixar de pensar que aquela escolha pessoal de entrar para o crime é fruto de um recorrente isolamento a qual estas pessoas estão submetidas.
    Quanto a cobertura da imprensa, sou muito radical neste sentido, para mim, foi sensacionalista e exagerada, o que gerou pânico na população. Acho que o único avanço qre reconheço neste ponto foi o fato de coibir a ação das tropas, por conta da transmissão em tempo real e os ativistas de direitos humanos, o que eu tbm não sei até que ponto é fato ou não mas enfim...
    No mais, ótimo texto e legal lembrar de clássicos neste momento, temos aí uma apimentada discussão lorenística.

    beijos

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