Depois de quase um ano e meio, volto a escrever no blog. Retorno com um conto. Espero que gostem:
A massa
O corpo que
caiu foi um presságio. Espatifado, no chão, era agora geléia, avermelhada e
amorfa. Deformada a face, que não havia. O Centro do Rio parou para observá-lo,
o corpo. O corpo era meu, e era de todos que, fixamente, o observavam. A polícia
até tentou cercá-lo e cercear da visão dos transeuntes a massa disforme de
fluido e carne que ali estavam expostas, como num museu. A arte suprema da
morte.
Mas o corpo
pertencia à multidão, que se comovia. Uns choravam, outros, sádicos, riam. De
nervoso. Porque, no final das contas, aquele corpo nos pertencia, era nosso
último estratagema, nossa última fuga, a doce libertação da queda, da morte
pensada. “Ele pulou de costas!”, exclamavam alguns, atônitos. Retirara, antes
de lançar-se aos ares, todos os espólios da vida: os sapatos, as roupas e um
relógio - falso. Somente na queda havia sido o homem verdadeiro, e morreu como
os homens verdadeiros: esmagado por mentiras.
“Um
suicida!”, bradaram rabinos, pastores e padres a rebanhos ordenados em todos os
cantos das cidades próximas. O tento sufocou a opinião pública. A capa de
jornal auxiliou: a foto, perfeita, da geléia, da ignomínia última de uma vida,
comprimida ao chão.
Acendi um
cigarro para apreciar a obra mais nefasta que já vi em toda minha vida. Em
pouco tempo, porém, o feito foi suprimido, os jornais calaram sua voz molhada
de tinta e de pressão e jamais tornaram a falar do homem mais livre da cidade. O
homem que se libertou nos ares, o homem que foi verdadeiro em sua derrocada
vertical – e literal. Como todos, também esqueci dele. Mas a massa disforme
ficou impressa em minha mente. Bastava fechar os olhos para apreendê-la, para
tê-la, a massa, ao meu lado.
Nunca me esqueci da massa.
Luciano Pádua